Bolívar e Monroe: Projetos Contrastantes na Construção das Relações na América
Veja aqui o documento da semana em destaque! — Bolívar e Monroe: Projetos Contrastantes na Construção das Relações na América
Confira o documento na íntegra no nosso acervo: Memorando enviado por Norman A. Bailey para William P. Clark sobre o futuro da OEA

11ª Conferência Extraordinária da Organização dos Estados Americanos (OEA), Hotel Glória, Rio de Janeiro, GB. / BR_RJANRIO_EH_0_FOT_EVE_08201
Ao discutir o futuro da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1982, o autor do documento menciona ter sido a OEA sempre um instrumento de realização da Pax Americana no Hemisfério Ocidental. Em seu argumento, o autor enfatiza esse processo ter se iniciado no final do século XIX com uma declaração que afirma haver uma preponderância de ações, palavras e posicionamentos dos Estados Unidos da América (EUA) na construção e na manutenção da Paz sobre essa região do globo – ocupada pelo continente americano.
A posição apresentada pelo autor não era uma novidade no período em que o documento foi escrito – tendo sido, inclusive, levantada em ocasiões recentes por Chefes de Estado em países latino-americanos. Ainda assim, não é demais apontar neste documento a persistência, não apenas de um discurso de cerca de 160 anos que parece imprimir sobre os EUA uma determinada orientação em sua política externa em relação ao continente americano, mas também de tensionamentos em torno de projetos de aproximação política dos países que o compõem, a fim de garantir a paz na região.
É a Declaração de James Monroe (1758-1831) apresentada à Primeira Sessão do 18º Congresso dos EUA, em 2 de dezembro de 1823 que recorre ao argumento da divisão hemisférica do globo, a fim de evidenciar a distância do destino político dos EUA e de outros países recém-independentes no continente americano em relação à condução das relações internacionais do continente europeu e do destino das metrópoles europeias. Monroe menciona entre os países americanos independentes apenas à época, com os quais os EUA mantinham relações diplomáticas, apenas Argentina (naquele momento, as Províncias Unidas do Rio da Prata), Chile, Colômbia e México – nomeados por Monroe como irmãos do Sul, não fazendo qualquer referência ao Império do Brasil e ao Haiti. De qualquer modo, em sua Declaração, entre diversos outros aspectos, Monroe afirma o suporte dos EUA na manutenção da independência dos países por eles próprios reconhecidos como independentes no continente americano. Nesses termos, sua forma de conceber a aproximação entre países desse continente consistia na defesa jurídica e política, perante as suas respectivas antigas metrópoles europeias, da independência e da soberania dos estados americanos.
No entanto, não se pode deixar de mencionar a existência de outro projeto de aproximação política dos países independentes no continente americano, pensado e buscado anos antes da Declaração de James Monroe. Trata-se da proposta feita por Simon Bolívar (1783-1830) em sua Carta de Jamaica. Escrita em 6 de setembro de 1815, neste documento Bolívar apresenta uma proposta de garantia da independência e da soberania de estados americanos emancipados da Espanha – sem mencionar, assim, o território da América portuguesa, nem o Haiti – por meio de constituição de uma Confederação entre esses países, à semelhança, ainda que com diferenças, do feito pelos EUA – por ele nomeados como irmãos do Norte. Por esse motivo, a proposta apresentada por Bolívar neste documento é usualmente entendida como a origem de um movimento Panamericano – ainda que sem incluir os EUA ou o Haiti, por diferentes razões que extrapolam os objetivos desse comentário.
A diferença jurídica, econômica e política entre os projetos baseados em cada um dos dois discursos é conhecida e amplamente discutida, não cabendo ser examinada aqui. Seja como for, é interessante notar que, após sucessivas tentativas, durante o século XIX, de afirmar e consolidar um projeto panamericano grosso modo baseado nos termos propostos por Bolívar – por meio de reuniões periódicas entre 1826 e 1865, aos poucos esse termo foi utilizado para indicar – ou, talvez, legitimar pela reiteração discursiva – a afirmação de um outro projeto panamericano ao final daquele século.
Iniciado em 1889 com a União Internacional das Repúblicas Americanas – proposta então pelos EUA com o objetivo de resolver disputas comerciais entre países americanos, inclusive por meio de arbitragem, esse projeto foi posteriormente ampliado. Não sem antes explicitamente inspirar outros projetos de aproximação política entre países independentes – como o movimento paneuropeu, deflagrado em 1923, tal projeto passou pouco a pouco a abranger outras áreas – tais como segurança coletiva, não-agressão, reconhecimento de direitos civis e políticos. Todas essas áreas foram encampadas a partir de 1948 pela OEA, a qual, para a consecução de sua missão institucional de consolidação e preservação da paz no continente americano, não apenas as aprofundou desde então, como também adicionou outras áreas de atuação (desenvolvimento, democracia, direitos humanos, igualdade de gênero, entre outros).
Prof. Dr. Arthur Capella,
Pesquisador do NACE CNV-Brasil,
Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo