Caso Rubens Paiva: o relato da investigação por pesquisadoras da CNV

Veja aqui o documento da semana em destaque! — Caso Rubens Paiva: o relato da investigação por pesquisadoras da CNV

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O Documento da Semana foi retirado do livro “História dos crimes e da violência no Brasil” — gentilmente cedido pela Editora Unesp — e aborda o desaparecimento e assassinato do ex-deputado federal Rubens Paiva durante a ditadura militar no Brasil. A partir de documentos oficiais e investigações recentes, o texto apresenta o contexto da sua prisão em 1971, as circunstâncias de sua morte sob custódia do Estado e os esforços posteriores para esclarecer os fatos e responsabilizar os envolvidos.

História dos crimes e da violência no Brasil /  Mary Del Priore, Angélica Müller (Orgs.). São Paulo: Editora Unesp, 2017. p. 321-344

Sobre as autoras:

Carolina de Campos Melo

Foi membro do Comitê de Relatoria do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade. É Professora do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Coordenadora Adjunta de Diversidade e Inclusão do mesmo Departamento. Doutora em Direito (Internacional) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2012). É Advogada da União – Advocacia-Geral da União.

Vivien Fialho da Silva Ishaq (in memoriam)

Vivien foi historiadora e doutora em História pela UFF. Especialista do Arquivo Nacional, liderou a equipe de Pesquisa e Difusão Documental em Brasília e coordenou o Núcleo de Acervos do Regime Militar. Teve papel fundamental na Comissão Nacional da Verdade, onde foi Gerente-executiva do Relatório Final. Pesquisadora do Observatório do Tempo Presente, dedicou sua carreira à preservação da memória e à busca pela verdade histórica.

O caso do desaparecimento de Rubens Paiva: os avanços da investigação da Comissão Nacional da
Verdade

Vivien Fialho da Silva Ishaq 1
Carolina de Campos Melo 2

Pichação registrada em fotografia durante manifestação contra a ditadura militar. – Memórias da Ditadura

Na manhã da quarta-feira, dia 20 de janeiro de 1971, era feriado de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, e fazia muito sol, quando Rubens Paiva e sua família foram surpreendidos pela chegada, em sua casa, de seis agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), à paisana e armados com metralhadoras, que entraram pela porta dos fundos. A casa tinha dois andares, de frente para o mar do Leblon. 

Rubens Beyrodt Paiva era paulista, nascido na cidade praiana de Santos. Engenheiro civil e empresário, foi eleito em outubro de 1962 deputado federal por São Paulo, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o mesmo partido do ex-presidente João Goulart,  ou simplesmente Jango, como ficou conhecido. Na Câmara dos Deputados, fora vice-líder do partido e vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada em 1963 para apurar as atividades do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), investigados pelo recebimento de recursos internacionais para desestabilizar o governo. 

Em 31 de março de 1964, com o golpe militar que destituiu o governo constitucional, foi instaurado no país um regime ditatorial que duraria 21 anos. O presidente deposto morreria no exílio, na Argentina, em 1976. Uma Constituição democrática só seria promulgada em 1988. Entre 1964 e 1985, os militares governaram o Brasil por meio de atos institucionais e medidas de exceção que permitiram a perseguição aos opositores e dissidentes com demissões, a cassação de direitos políticos, prisões e o exílio; tempos em que a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos forçados foram sistematicamente utilizados contra aqueles que contestavam o regime. Os generais presidentes construíram um sistema repressor complexo que permeava as estruturas administrativas dos poderes públicos e exercia uma vigilância permanente sobre as principais instituições da sociedade civil: sindicatos, organizações profissionais, universidades, igrejas, partidos. Foi criada também uma burocracia de censura que proibia manifestações de opinião e de expressões culturais identificadas como hostis ao regime militar.

Na madrugada do dia 2 de abril de 1964, portanto dois dias depois do golpe, Rubens Paiva saiu de Brasília para discursar ao vivo pela Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, em defesa da legalidade do governo Jango, que acabara de ser deposto, conclamando o povo a resistir ao golpe, classificando os militares como fascistas e golpistas. Rubens Paiva acabou cassado logo no primeiro Ato Institucional, de 9 de abril de 1964.  Temendo ser preso, o deputado tentou fugir de Brasília em um pequeno avião, episódio que acabou abortado devido à rápida ação das forças repressivas; apesar disso, não conseguiram evitar que o parlamentar escapasse, ileso, do tiroteio do cerco policial montado contra ele. Em fuga com carro em disparada pela cidade, finalmente conseguiu se refugiar na Embaixada da Iugoslávia.  Seu filho, Marcelo, lembra que pedia ao pai contar e recontar a história para os amigos, pois “era incrível imaginar um cara meio gordo, sempre de sapato, terno e gravata, com abotoaduras, meio sedentário, num momento cinematográfico, heróico”  A família mudou-se para Brasília, e assim puderam vê-lo cotidianamente durante os três meses que ele permaneceu protegido na embaixada. Em junho de 1964, Rubens Paiva deixou o Brasil, partindo para o exílio sozinho, primeiro indo para a Iugoslávia, depois seguindo para Paris. Ainda em 1964, partiu de Paris em direção ao Uruguai e, durante a escala no Rio de Janeiro, impulsivamente desceu do avião, caminhou pela pista, entrou no saguão e tomou um táxi até o Aeroporto Santos Dumont, de onde embarcou para São Paulo, aparecendo de surpresa na casa da família. Dois anos depois, mudaram-se para o Rio de Janeiro, onde alugaram uma casa em frente à praia do Leblon, na esquina da rua Delfim Moreira com a Almirante Pereira Guimarães. Este foi o local em que teve o último contato com a família. A esposa Maria Eunice Facciola Paiva e os seus cinco filhos – Vera Sílvia, Maria Eliana, Ana Lúcia, Maria Beatriz e Marcelo – ainda não puderam velar Rubens Paiva.

Durante os meses de trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entre 2012 e 2014, um caso de latrocínio no sul do país, o depoimento de “agente Y” e o envolvimento de um general deram novos contornos ao caso, somados a depoimentos e documentos sistematizados ao longo das últimas décadas. Neste mesmo período, cinco militares reformados foram denunciados pelo Ministério Público Federal por crimes cometidos contra o deputado. Os resultados da investigação da CNV não guardam ligação com a versão apresentada pelos militares à época dos fatos.

A CNV e as investigações sobre a prática das graves violações de direitos humanos pela ditadura 

  A Comissão Nacional da Verdade foi instalada em 16 de maio de 2012 e extinta em 16 de dezembro de 2014. Seu caráter temporário encontrou parâmetro em dezenas de experiências de comissões da verdade que já se instalaram nos cinco continentes, em períodos de transição para a democracia ou com a celebração de acordos de paz. Sua instituição ocorreu mais de vinte e seis anos após o fim da ditadura militar, expressando que a passagem do tempo não foi um obstáculo para que o Brasil pudesse enfrentar seu legado trágico de graves violações de direitos humanos. Cumprindo o mandato que lhe foi conferido pela Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, realizou o exame e o esclarecimento de graves violações de direitos humanos praticadas no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, datas de promulgação das constituições democráticas, tendo, portanto, como horizonte de sentido o direito à memória e à verdade histórica. Em agosto de 2012, poucos meses depois de sua instituição, o colegiado da CNV aprovou a resolução que definiu o campo das suas investigações: as graves violações praticadas por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com o apoio ou no interesse do Estado. Foram excluídas, portanto, as condutas de particulares, muitas das quais já haviam sido objeto de investigação e julgamento pela justiça militar durante a ditadura.

Ao definir competências, a lei apresentou uma lista de quatro graves violações de direitos humanos que deveriam ser investigadas em razão de sua gravidade: tortura, morte, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver. A expressão“graves violações de direitos humanos” designa violação a direitos considerados inegociáveis, como o direito à vida e à integridade pessoal, não sendo suscetíveis de suspensão mesmo em situações excepcionais como a guerra e o estado de emergência. Ao longo dos dois anos e meio de trabalho, a CNV contemplou em seu mandato, também como graves violações de direitos humanos, as detenções ilegais e arbitrárias, assim como os casos de violência sexual, ambos uma realidade imposta pelo regime militar.  

Por não ter sido instituída logo após a transição para a democracia, teve por referência iniciativas de familiares de mortos e desaparecidos, de setores da sociedade civil e de diversas organizações e instituições, que vinham, desde o regime militar e especialmente após a democratização, causando fissura na narrativa oficial sobre o ocorrido. Basta lembrar o abaixo-assinado dos presos políticos de São Paulo, ainda em 1975, em que se demonstravam o caráter uniforme dos abusos, com referências aos mesmos termos e procedimentos e a identificação de agentes militares de diversos níveis hierárquicos. Ou a publicação, em 1985, do “Brasil Nunca Mais” pela Arquidiocese de São Paulo e pelo Conselho Mundial de Igrejas. Ou, ainda, a publicação, em 1995, do “Dossiê de mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964”, promovido pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Couberam ao Estado brasileiro outros avanços anteriores à CNV, como aqueles promovidos pelo Ministério Público Federal, pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Junto ao Arquivo Nacional, foi analisado o arquivo do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), recolhido em 2005, assim como vasto repertório documental sobre a ditadura. O que não se pôde prever – e que foi de grande impacto para o funcionamento da CNV-  foi a criação de mais de uma centena de outras comissões da verdade, em nível estadual, municipal, em universidades, sindicatos e outros segmentos. 

Seu Relatório foi tornado público em 10 de dezembro de 2014, composto de 3 volumes e com mais de quatro mil páginas. A última parte do volume I é reservada às conclusões e recomendações. Os resultados das investigações possibilitaram a eleição de quatro conclusões de ordem geral:  1) a comprovação das graves violações de direitos humanos entre 1946 e 1988, notadamente durante a ditadura militar; 2) a comprovação do caráter generalizado e sistemático das graves violações de direitos humanos, havendo a repressão e a eliminação dos opositores se convertido em política de Estado; 3) a caracterização da ocorrência de crimes contra a humanidade, no contexto de ataque à população civil – homens, mulheres, crianças, adolescentes, idosos, vinculados aos mais diferentes grupos sociais, como trabalhadores, camponeses, indígenas e estudantes -, e portanto, não passíveis de anistia ou prescrição; 4) a persistência do quadro de graves violações de direitos humanos nos dias de hoje, o que resulta em grande parte da impunidade pelos atos cometidos durante a ditadura militar. Foram também adotadas 29 recomendações para que tais violações não voltem a ocorrer no Brasil, com a sinalização de passos ainda a serem dados para o fortalecimento da democracia. 

Os homicídios eram cometidos pelos órgãos de segurança com uso arbitrário da força em circunstâncias ilegais, já nos primeiros dias que seguiram o golpe de 1964. Foram identificadas 191 mortes por execução sumária ou decorrentes de tortura, perpetradas por agentes a serviço do Estado, e 243 pessoas vítimas de desaparecimentos forçados, ou seja, mais da metade das 434 vítimas fatais da ditadura. A CNV assume que esses números certamente não correspondem ao total de mortos e desaparecidos, mas apenas aos de casos cuja comprovação foi possível, apesar dos obstáculos como a falta de acesso à documentação produzida pelas Forças Armadas. Esses crimes foram praticados no interior da complexa estrutura criada no aparelho estatal, ou com a vítima sob custódia do Estado, ainda que fora de uma instalação policial ou militar, ou em locais destinados exclusivamente à prática de tortura e execuções. A grande maioria das mortes ocorreu em decorrência de tortura, durante os longos interrogatórios a que eram submetidos os presos políticos. Para ocultar as reais circunstâncias desses assassinatos, os órgãos de segurança montaram encenações de falsos tiroteios, suicídios ou acidentes. Quase sempre ocultados, alguns corpos foram entregues às famílias para seu sepultamento civil em caixão lacrado, para esconder as marcas de sevícia.

Os desaparecimentos forçados foram parte da estratégia da ditadura para ocultar crimes perpetrados por agentes do Estado. Em sintonia com os parâmetros internacionais sobre o tema, foram considerados delitos permanentes que se perpetuam até que sejam identificados os restos mortais da vítima. Em outras palavras, o desaparecimento forçado não cessa enquanto não se conhecer o paradeiro da vítima e enquanto não se certificar de sua identidade. Não basta, portanto, para a cessação da conduta criminosa, que a morte seja presumida por meio da emissão de certidão de óbito ou de algum reconhecimento oficial do Estado.

A prisão, a tortura, a morte e o desaparecimento forçado de Rubens Paiva foram resultado de uma política sistemática do regime militar contra opositores políticos, baseada na hierarquia, planejamento, execução, uso ilegal de bens públicos, procedimentos, orçamento e honrarias, é o que se extrai do trabalho da Comissão Nacional da Verdade.

A detenção ilegal de Rubens Paiva

Momentos antes da invasão da casa no bairro do Leblon, por volta das 10 horas, Rubens Paiva havia atendido um telefonema de uma pessoa que queria lhe entregar uma correspondência proveniente do Chile. O filho Marcelo lembra que os pais estavam na sala, prontos para ir à praia. Por volta das 11horas, a filha Eliana se despediu e lembra que o pai lhe perguntou: você não vai me dar um beijo? Ela disse: “Claro que vou”. Eliana relatou que nunca esqueceria aquele momento, pois “foi a última vez que vi papai”.  Marcelo relata que os militares fecharam todas as janelas e cortinas da casa e começaram a fazer perguntas, trocando informações pelo rádio. Avisaram a Rubens Paiva que eles deveriam levá-lo para prestar depoimento. O deputado subiu as escadas para se arrumar, colocou terno e gravata, relógio no pulso, umas cadernetas no bolso. Saiu escoltado por dois agentes, enquanto outros quatro ficaram na casa. Toda a família, com exceção das filhas Eliana e Vera – a primeira estava na praia e a segunda em Londres -, foi mantida detida e incomunicável na própria casa pelos agentes, enquanto Rubens Paiva foi levado no carro da esposa Eunice para o Quartel da 3ª Zona Aérea, localizado ao lado do aeroporto Santos Dumont e comandado pelo Tenente-Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier. Era a maneira de garantir que ninguém saberia da detenção de Rubens Paiva.

Por volta das 14 horas, a filha Eliana chegou em casa de volta da praia e encontrou a mãe muito assustada, que lhe contou que o pai havia sido preso. Eunice pediu à filha que tentasse sair de casa para avisar o tio, que era advogado. Eliana conseguiu sair e dar o telefonema para o tio.  Ela lembra do retorno à residência: “O mais fortão perguntou: ‘o que você foi fazer na rua?’, respondi que tinha ido jogar. E ele, furioso: ‘Não, você não foi, você foi avisar seu tio que teu pai está preso’. Como ele sabia? Meu tio, como um bom advogado, ligou para casa para saber o que tinha acontecido. Eles escutaram pela extensão”. Eunice também pediu ao filho Marcelo que levasse um bilhete escondido numa caixa de fósforo à vizinha, que dizia “Rubens foi preso, ninguém pode vir aqui, senão é preso também.”  

No dia seguinte, 21 de janeiro, os agentes do CISA levaram Eunice Paiva e Eliana, então com 15 anos, para o Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I Exército, situado no bairro da Tijuca.  Por volta das 11 horas da manhã, elas foram levadas em um carro Fusca e, em frente ao Maracanã, foram colocados capuzes pretos em suas cabeças. Apesar da confirmação dos agentes do DOI de que Rubens Paiva lá estava detido, Eunice e a filha não estiveram com ele. Eliana passaria todo o dia encapuzada, em pé, encostada em uma parede, enquanto pessoas passavam e diziam: –  comunista! Foi assediada sexualmente e levava coques, pancadas na cabeça dadas com os dedos. Eliana passou por três interrogatórios, o primeiro foi em uma sala pequena, sem janelas, havia um pau de arara e sangue no chão. Após responder a perguntas sobre inúmeras pessoas e até sobre um trabalho escolar seu sobre a revolução na Tchecoslováquia, acabou sendo libertada. Eunice permaneceria presa por 12 dias, até 2 de fevereiro. 

Ao ser libertada, Eunice viu o carro no qual Rubens Paiva havia sido levado de casa, um Opel Kadett, no pátio interno do quartel, carro que, posteriormente, foi devolvido à família mediante recibo de entrega do Ministério do Exército. Marcelo lembra que a mãe voltou para casa muito magra e sem o pai. A família, contudo, tinha esperança em rever logo Rubens, pois conforme explica Marcelo, “naquela época, muita gente ia presa. Prestava depoimento, ficava uns dias e saía. Foi assim com muitos amigos da família. Não se falava ainda em desaparecido político, meu pai foi o quinto no Brasil.” 

Movida pelo sentimento de esperança, a família levava roupas e objetos para Rubens Paiva, entregues no segundo andar do Ministério do Exército, no Rio de Janeiro. Passado alguns dias, uma nova entrega de roupas foi recusada, sob alegação de que ele não se encontrava em nenhuma organização militar sob o comando do I Exército. 

Para encobrir o desaparecimento forçado de Rubens Paiva, o I Exército divulgou versão na qual alegou que, quando era conduzido por agentes de segurança para ser interrogado sobre fatos relacionados a “atividades subversivas, teve seu veículo interceptado por elementos desconhecidos, possivelmente terroristas, empreendendo fuga para local ignorado, o que está sendo objeto de apuração por parte deste Exército”.  A mesma versão foi sustentada pelo Ministério do Exército em pleno regime democrático, em 1993, em relatório encaminhado ao Ministro da Justiça, afirmando que, após o episódio da interceptação e fuga, não existe nenhum registro de seu paradeiro. 

CNV: pesquisa nos arquivos da repressão

Muitos esforços foram envidados para a investigação do caso Rubens Paiva antes da CNV.  Seu nome consta do “Dossiê ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), assim como consta do Anexo I da Lei n. 9.140/1995, na primeira lista oficial de mortos e desaparecidos assim reconhecidos pelo Estado brasileiro. Seu mandato de deputado federal foi restituído simbolicamente em sessão solene promovida pela Câmara dos Deputados, em 2012. 

Para os avanços na investigação, muitos divulgados em audiência pública realizada no Arquivo Nacional em fevereiro de 2014, a CNV localizou um inquérito que foi instaurado em 1986 para apurar o desaparecimento do deputado. Em depoimento prestado na Delegacia de Ordem Política e Social da Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal no Rio de Janeiro (DOPS/SR/DPF/RJ), em setembro daquele ano, Cecília de Barros Correia Vieira de Castro afirmou que, na noite anterior à detenção ilegal de Rubens Paiva, 19 de janeiro, agentes do CISA efetuaram a sua prisão e a de Marilene de Lima Corona no aeroporto do Galeão, onde desembarcariam de um vôo procedente do Chile. 

De acordo com o termo de declarações de Cecília no mesmo inquérito: as duas foram retiradas de dentro do avião da Varig, “foi levada para uma das dependências do Aeroporto do Galeão, mais precisamente na Base Aérea, antigo aeroporto”; e na revista foram encontradas várias cartas de exilados políticos no Chile para serem entregues no Rio de Janeiro. Os agentes identificaram que uma das cartas apreendidas era destinada a Rubens Paiva. Ainda no dia 19, após o encontro das cartas,  Cecília foi levada com a cabeça coberta com um capuz para outra dependência do Galeão, local em que sofreu ofensas pessoais, tendo sido despida.  Passou o restante da noite sofrendo ameaças e todo tipo de humilhações. 

No dia seguinte, dia 20, Cecília recordou que uma pessoa não identificada chegou no recinto onde se encontrava fazendo o seguinte comentário: o “doutor” já chegou. Era Rubens Paiva, como se certificaria horas mais tarde. Cecília contou que, ao ser colocada no carro, encontrou no interior deste um homem com as mãos amarradas, com a camisa em desalinho, tendo notado algumas manchas de sangue no tecido da camisa, e o que mais a havia marcado foi a fisionomia dele, o qual estava com os olhos “esbugalhados”. Cecília reconheceu o homem como sendo Rubens Paiva, e que também foi reconhecida por ele, pois era professora na escola dos filhos do deputado, Colégio Sion, sem contudo trocarem ali nenhuma palavra. Declarou também que ele estava bastante vermelho e que evidentemente estava vivo até aquele momento. Durante o trajeto, momentos antes de chegar no DOI, ela, Marilene e Rubens Paiva tiveram que colocar uma toalha pequena sobre o rosto.

A CNV identificou no acervo do SNI, documento da agência Rio de Janeiro,  de 25 de janeiro de 1971, que complementa o testemunho de Cecília, relatando o ocorrido com precisão. Segundo o informe, “Rubens Paiva Beyrodt foi localizado, detido e levado para o QG da 3ª. Zona Aérea e, de lá, conduzido juntamente com Cecília e Marilene para o DOI”. O documento reafirma os termos do depoimento de Cecília Viveiros de Castro em que revelou que estava no mesmo carro em que Rubens Paiva foi colocado, no Quartel da 3ª Zona Aérea, que os levaria ao DOI. 

No DOI, Cecília lembra que foi guiada por uma pessoa até determinado ponto, onde lhe colocaram um capuz na cabeça, e foi ordenado que colocasse as mãos na parede e que também soletrasse seu último sobrenome. Cecília relembrou durante a identificação, um agente gritava com eles, e que o deputado teve que soletrar seu último sobrenome. Rubens Paiva foi levado para a sala de interrogatório, e não foi mais visto por Cecília e Marilene. 

A versão oficial do Exército de que Rubens Paiva teria escapado em resgate nas imediações do Alto da Boa Vista sofreu outros abalos, também no ano de 1986, quando novas informações provenientes de depoimentos começaram a preencher as lacunas na história do desaparecimento. 

O primeiro deles foi o depoimento do então tenente-médico do Exército Amílcar Lobo ao Departamento de Polícia Federal, em 25 de setembro de 1986, no mesmo inquérito policial instaurado para apurar o desaparecimento de Rubens Beyrodt Paiva. Amilcar Lobo declarou que, em uma certa madrugada do mês de janeiro de 1971, foi chamado em sua residência para fazer um atendimento. Ao chegar no DOI, foi encaminhado a uma dependência chamada presídio, onde, em uma das últimas celas, encontrou um indivíduo com fortes dores abdominais. Ao examinar o paciente, verificou que ele se encontrava na condição de abdômen em tábua, o que em linguagem médica pode caracterizar uma hemorragia abdominal, sendo que, naquela situação, parecia ter havido uma ruptura hepática. Durante o início do exame e ao final deste, o paciente lhe disse se chamar Rubens Paiva. O médico aconselhou à pessoa que o conduziu até aquela dependência que o paciente fosse imediatamente hospitalizado, e que, face ao estado clínico apresentado, ele teria apenas algumas horas de vida, e que suas chances de sobreviver seriam de apenas vinte por cento. Mais tarde, Amilcar recebeu a notícia de que a pessoa a quem fizera atendimento de madrugada havia falecido.

O segundo depoimento foi do capitão Raimundo Ronaldo Ramos, que estava conduzindo Rubens Paiva durante o “resgate” e disse ter visto “uma pessoa atravessar a rua em meio a outro carro”. Por sua vez,  no depoimento prestado pelo sargento Jurandyr Ochsendorf e Souza, em 25 de setembro de 1986, no mesmo inquérito policial, este afirmou ter acompanhado o então capitão ao Alto da Boa Vista, junto com seu irmão sargento Jacy Ochsendorf e Souza, e que não podia afirmar ter visto o prisioneiro se evadir do local e nem precisar se a pessoa que estavam transportando era mesmo Rubens Paiva e “que a bem da verdade o declarante não sabia o nome do prisioneiro que estava conduzindo (…) que o declarante não pode afirmar se era realmente Rubens Paiva a pessoa a quem transportara naquele dia em que ocorreu a interceptação, que o declarante não pode precisar da forma que tomou conhecimento do nome do prisioneiro como sendo Rubens Paiva, mas que pode ter sido através dos órgãos.”

Somente em 2013, a versão da fuga de Rubens Paiva foi definitivamente sepultada com o depoimento do coronel da reserva do Exército Brasileiro, Raymundo Ronaldo Campos, à Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro (CEV-RIO), que esteve lotado no DOI entre o final do ano de 1969 até os primeiros meses do ano de 1971.

 O coronel contou à CEV-RIO que, na noite entre o dia 21 e 22 de janeiro de 1971, o chefe do setor de operações de plantão, o major Francisco Demiurgo Santos Cardoso, o chamou e disse, “olha, você vai pegar o carro, levar em um ponto bem distante daqui, vai tocar fogo no carro para dizer que o carro foi interceptado por terroristas e vem para cá’. Que chegou a questionar seu superior perguntando “ué, por quê?” tendo ouvido como resposta que era “para justificar o desaparecimento de um prisioneiro”. Raymundo Ronaldo Campos afirmou que o major Demiurgo não lhe deu o nome do prisioneiro e só o fez  depois, quando voltou ao quartel e preencheu o Mapa de Missão; somente aí é que foi informado de que se tratava de Rubens Paiva, motivo pelo qual no Mapa de Missão aparece o nome do preso político. Raymundo finalizou seu depoimento, dizendo que, segundo ouviu do major Demiurgo, a pessoa que deveria estar no carro morreu no interrogatório e que não lhe foi dito em que condições esta pessoa morreu no interrogatório, e que o major apenas informou “morreu, morreu, morreu no interrogatório”. 

Avanços da investigação: agentes militares da repressão identificam torturador de Rubens Paiva

O caso contou com grande avanço com a entrega, em novembro de 2012, de documentos que estiveram sob o poder do coronel Júlio Miguel Molinas Dias, ex-comandante do DOI do I Exército, no Rio de Janeiro. Os documentos haviam sido apreendidos pela Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul após o assassinato do coronel Molinas, ocorrido em 1º de novembro de 2012. Entre os documentos apreendidos, estava o documento do DOI intitulado “Turma de Recebimento”, que constituiu importante prova para o esclarecimento das circunstâncias da prisão ilegal e arbitrária de Rubens Paiva. Nesse documento, fica comprovada a entrada do deputado no DOI no dia 20 de janeiro de 1971, encaminhado pelo QG-3, pela equipe do CISA, e nele consta a lista de documentos e objetos pessoais de Rubens Paiva, como cartão de identificação de contribuinte, um cartão Diners Club, carteira de habilitação, cinto de couro preto, canetas, relógio, dinheiro, 14 livros, 4 cadernos de anotações. No mesmo documento, há uma anotação manuscrita registrando a entrega dos cadernos ao então major José Antônio Nogueira Belham, o comandante do DOI.

Mais um passo foi dado pela CNV ao tomar depoimentos, em momentos distintos, de dois militares que haviam pertencido aos quadros do 1º Batalhão de Polícia do Exército e que presenciaram a tortura que resultou na morte de Rubens Paiva, no DOI do Rio de Janeiro. O primeiro, o oficial do Exército Ronald José Mota Batista de Leão, e o segundo, seu subordinado e  testemunha ocular das torturas sofridas por Rubens Paiva. Ao amparo do disposto do inciso I, do artigo 4º da Lei 12.528/2011, este teve protegida a sua identificação de testemunha, sendo denominado como “agente Y.

O então capitão Ronald Leão relatou que a chegada de Rubens Paiva ao batalhão ocorreu à noite , e que ele foi trazido pelos agentes do Centro de Inteligência do Exército (CIE), entrando pelo portão dos fundos. Este procurou saber de quem se tratava, mas foi impedido pelos militares do CIE, o major Rubens Paim Sampaio e o capitão Freddie Perdigão, sob alegação de que era um preso importante e que estava sob responsabilidade do CIE e do DOI-CODI. Ronald contou ter alertado ao comando do Batalhão e, em seguida, ter ido para casa. No dia seguinte à tarde, no dia 21 de janeiro, Ronald Leão foi procurado pelo “agente Y” em sua sala para avisá-lo que “algo estranho estava acontecendo” no interrogatório do preso que havia chegado na noite anterior.  Diante da gravidade do fato presenciado, tomaram a decisão de ambos relatar o ocorrido ao então major Belham. Em seguida, dirigiram-se ao comandante do Batalhão, coronel José Ney Fernandes Antunes, relatando a conversa com o major Belham. Na manhã do dia seguinte, 22 de janeiro, ao chegar ao quartel, Ronald teria sido informado “sobre uma possível fuga do referido preso e a abertura de uma sindicância para apurar os fatos.” 

Em sua carta à CNV, o militar Ronald Leão arrolou os nomes dos militares que poderiam esclarecer as circunstâncias da morte, tortura e desaparecimento de Rubens Paiva. São eles: general Belham, que na época chefiava o DOI CODI, e estava nas dependências do DOI CODI, quando da chegada do Sr Rubens Paiva, e ressaltando que  ele sabe quem interrogou o preso e o que aconteceu. O segundo militar acusado foi o oficial da Reserva, interrogador do DOI, de nome Hughes, caracterizado como sendo um homem forte, de olhos azuis, onde após ser licenciado pelo Exército, foi para os Correios e Telégrafos”. O terceiro acusado foi o coronel Raymundo Ronaldo Campos, Oficial de Cavalaria, que participava dos interrogatórios. E o quarto e último envolvido, Rubem Paim Sampaio, chefe da equipe do CIE que interrogou Rubens Paiva.

O “agente Y”, em abril de 2013, encaminhou à CNV um Termo de Declaração, confirmando as declarações prestadas por Ronald Leão, reafirmando que Rubens Paiva chegou ao DOI durante a noite, quando já estava encerrado o expediente no Batalhão, e que ele já tinha ido para casa. Foi por esse motivo que soube da chegada do preso apenas no dia seguinte, pelos comentários ouvidos. Nesse mesmo dia, e quase ao término do expediente, por volta das 17 horas, ele reparou que a porta de uma das salas de interrogatório do DOI estava entreaberta e, ao se dirigir para fechá-la, deparou-se com um interrogador do DOI, de nome Hughes, no seu interior, “utilizando método não tradicional de interrogatório” em uma pessoa que, de relance, pareceu ser de meia idade. O “agente Y” declarou que pressentiu que o que tinha visto poderia ter consequências fatais, e se dirigiu diretamente à sala do capitão Ronald Leão para relatar o que havia presenciado. O capitão Ronald e o “agente Y”  decidiram informar ao Chefe do DOI, e atestou que falaram “pessoalmente com o então major Belham, o que fora visto, alertando-o para as possíveis consequências.” 

A descrição do agente Hughes como torturador de Rubens Paiva, fornecida pelo capitão Ronald Leão e pelo “agente Y”, coincide com a descrição do chefe do interrogatório dada por Cecília de Barros Correia Viveiros de Castro a Marcelo Paiva,  que contou que ela, Marilene e o seu pai permaneceram de pé muito tempo, com os braços para cima, em um recinto fechado. Com a longa duração do castigo, Cecília teria fraquejado, tendo sido amparada por Rubens Paiva, que estava ao lado dela. A atitude de Rubens Paiva  teria irritado o chefe do interrogatório, descrito por Cecília como um oficial loiro, de olhos azuis, que atacou meu pai e começou a surrá-lo.“Vocês vão matá-lo, gritou uma das mulheres. Isso fez com que esse oficial ficasse completamente fora de si e, agarrando a mulher pelos cabelos, forçou-a aproximar-se do meu pai, já estirado no chão. – Aqui não se tortura, isso é uma guerra, gritou o oficial.” 

A investigação da CNV identificou o oficial “Hughes” como sendo Antônio Fernando Hughes de Carvalho, nascido no Rio de Janeiro em 1º de junho de 1942 e falecido no ano de 2005, como sendo o interrogador visto pelo “agente Y”  em sala do DOI, submetendo Rubens Paiva a torturas. Em depoimento prestado à CNV em 24 de fevereiro de 2014, o “agente Y”  identificou foto de Antônio Fernando Hughes de Carvalho, apresentada pela Conselheira Rosa Cardoso, como sendo o agente que ele viu torturar Rubens Paiva de forma extremamente violenta e que pode ter sido a causa principal de sua morte. Segundo o “agente Y”, “na oportunidade, tendo em vista as condições físicas do próprio senhor, tive o sentimento de que ele poderia não resistir. Não posso, entretanto, dizer se as condições físicas do Sr. Rubens Paiva tinham outros antecedentes, ou se este fato gerou a sua morte” Antônio Fernando Hughes de Carvalho recebeu a Medalha do Pacificador  “como uma homenagem especial do Exército, pelos assinalados serviços prestados no combate à subversão, colaborando dessa forma, para a manutenção da lei, da ordem e das instituições”. 

Militares envolvidos na tortura e desaparecimento de Rubens Paiva

  Entre os militares arrolados na declaração de Ronald Leão, dois se encontram falecidos: Amílcar Lobo e Freddie Perdigão Pereira. Em 13 de junho de 2013, a CNV convocou o general da reserva José Antonio Nogueira Belham para prestar esclarecimentos ao Conselheiro Cláudio Fonteles, sobre o caso de desaparecimento de Rubens Paiva e outros fatos relacionados com seu serviço no Exército Brasileiro. Quatro meses antes, em 14 de fevereiro de 2013, o general Belham já havia encaminhado à CNV documentação na qual declarou ter exercido a chefia do DOI do I Exército, no período de novembro de 1970 a maio de 1971. Anexada ao documento, foi encaminhada sua Folha de Alterações, documento que registra os dados funcionais de militares.

O general Belham foi informado da existência dos depoimentos prestados à CNV por testemunhas oculares da prisão e tortura sofrida por Rubens Paiva do DOI do I Exército. O general tomou conhecimento do conteúdo das declarações das duas testemunhas e que, no dia 21 de janeiro de 1971, após presenciarem as torturas sofridas pelo deputado, as duas testemunhas tinham estado com ele, em seu gabinete, onde relataram a cena vista na sala de interrogatório. Diante dos fatos expostos, o general Belham confirmou conhecer as testemunhas, mas negou a existência de tal episódio, alegando que não estava no DOI naquele dia 21 por se encontrar de férias, estando, inclusive fora da cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, sua resposta foi contestada pelo conselheiro Cláudio Fonteles, a partir da análise de sua Folha de Alterações, correspondente ao período de 1º de janeiro a 30 de junho de 1971, que identificou que o militar estava de serviço nos dias 2, 5, 8, 11, 14, 17, 20, 23, 26 e 29 de janeiro de 1971, pois há o registro de deslocamentos sigilosos com saque de diárias. É importante assinalar que o dia 20 de janeiro de 1971 é a data em que o deputado federal Rubens Paiva foi trazido, no final do dia, ao DOI do I Exército. O general Belham encerrou seu depoimento se comprometendo a enviar comprovação de que não esteve no DOI no dia 21 de janeiro de 1971.  A CNV não recebeu qualquer documentação do general nesse sentido. 

Do documento encaminhado pelo general, antes de sua convocação pela CNV, consta a afirmação de que: “nos períodos de novembro de 1970 a 17 de fevereiro de 1971 e 17 de fevereiro a maio de 1971, quando exerceu a chefia, não houve mortes no DOI/IEX. A determinação do então Comandante do I Exército, General Sylvio Frota, pessoa religiosa (católica) e responsável, era que nenhum preso fosse maltratado e que quando desse entrada no DOI/IEX, todo e qualquer preso tinha que ser submetido a um exame médico rigoroso para verificar seu estado físico.” A despeito desta declaração, durante o período de comando no DOI, a CNV identificou que pelo menos quatro presos políticos que estiveram detidos naquele órgão continuam desaparecidos: Celso Gilberto de Oliveira, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), desaparecido em 10 de dezembro; Antônio Joaquim de Souza Machado e Carlos Alberto Soares de Freitas, ambos da Vanguarda Armada Revolucinárias Palmares (VAR-Palmares) e desaparecidos em 15 de fevereiro; e Aluízio Palhano Pedreira Ferreira (VPR), desaparecido em 20 de maio. Igualmente, verificou que no período em que o general Belham esteve à frente do DOI, outros cinco presos políticos foram executados naquela unidade: Aderval Alves Coqueiro, do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), morto em 06 de fevereiro de 1971; Gerson Theodoro de Oliveira e Maurício Guilherme da Silveira, ambos da VPR e mortos em 22 de março;  Marilena Villas Boas Pinto e Mário de Souza Prata, ambos da Ação Libertadora Nacional (ALN) e mortos em 03 de abril.

Política de Estado: autoria, instituições e locais

A nomeação dos autores das graves violações de direitos humanos por parte da CNV  teve por pressuposto a atuação da repressão por meio de cadeias de comando. A demonstração de que tais violações resultaram de uma política de Estado coloca por terra qualquer argumento no sentido de que “excessos” foram cometidos nos “porões” da ditadura.  A indicação da autoria, como no caso Rubens Paiva, teve por pressuposto a “participação coordenada de agentes em diferentes níveis hierárquicos e no exercício de funções distintas, organizados sob a forma de cadeias de comando”. A CNV estabeleceu três categorias de segmentação para a autoria das graves violações de direitos humanos. A responsabilidade político-institucional, envolvendo os presidentes militares, ministros das três Forças Armadas e os chefes dos centros de informação – CIE, CISA e  Centro de Informações da Marinha (Cenimar), considerou o poder de definição, estruturação, planejamento e decisão sobre as políticas de persecução e repressão de opositores ao regime militar. A responsabilidade pelo controle de estruturas e pela gestão de procedimentos contemplou aqueles que permitiram, por ação ou omissão, no exercício da hierarquia, que a prática das graves violações de direitos humanos ocorressem, de forma sistemática ou ocasional, em unidades do Estado sob sua administração. A terceira categoria corresponde à responsabilidade pela autoria direta e é voltada àqueles que executaram e deram causa direta e imediata às graves violações de direitos humanos. Para as três categorias, a CNV chegou a uma listagem de 377 agentes públicos.

A CNV apontou no volume III a cadeia de comando dos órgãos envolvidos na prisão, tortura, morte e desaparecimento do deputado e a autoria direta das graves violações, com a identificação da fonte documental / testemunhal que lastreou a nomeação: Antônio Fernando Hughes de Carvalho (1942-2005); João Paulo Moreira Burnier (1919-2000); José Antônio Nogueira Belham (1934 – ), Rubens Paim Sampaio (1934- ); Amílcar Lobo Moreira da Silva (1939-2005); Jurandyr Ochserndorf e Souza (1939 – ); Jacy Ochserndorf e Souza (1945 – ); Raymundo Ronaldo Campos (1935 – ), Freddie Perdigão Pereira (1936-1996), José Ney Fernandes Antunes (1926 – ) e Francisco Demiurgo Santos Cardoso (1930 – ).

A CNV identificou como locais de graves violações de direitos humanos de Rubens Paiva: sua residência, na Avenida Delfim Moreira, no Leblon, na qual foi detido ilegalmente; o comando da III Zona Aérea, na Avenida General Justo, local em que foi torturado; e o DOI-CODI, onde teria sido torturado, morto e inicialmente ocultado o seu cadáver. Mesmo diante do depoimento do coronel reformado Paulo Malhães à CNV, de que este teria jogado o corpo do deputado no mar, sem qualquer outro indício que confirmasse a afirmativa, a CNV entendeu permanecer a responsabilidade do Estado brasileiro a identificação dos restos mortais, devolvê-los à família e esclarecer as circunstâncias de sua morte. Neste e em muitos outros casos os avanços na investigação do caso não foram suficientes para se determinar o paradeiro das vítimas.

Ainda no decorrer dos trabalhos da CNV, em maio de 2014, a Justiça Federal no Rio de Janeiro recebeu uma denúncia proposta pelo Ministério Público Federal em face de cinco ex-militares acusados pelo homicídio e ocultação de cadáver do deputado. 

O general José Antônio Belham, ex-comandante do DOI, e o ex-integrante do CIE, Rubens Paim Sampaio, foram denunciados por homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa armada. A denúncia menciona ainda a participação de João Paulo Moreira Burnier, Antônio Fernando Hughes de Carvalho, Freddie Perdigão Pereira e Ney Fernandes Antunes, já falecidos. O coronel reformado Raymundo Campos e os irmãos Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendor e Souza foram acusados de ocultação de cadáver, fraude processual e associação criminosa armada. Para o MPF, Francisco Demiurgo Santos Cardoso, Freddie Perdigão Pereira, Antônio Fernando Hugues de Carvalho, Syseno Sarmento, Ney Fernandes Antunes e Ney Mendes, já falecidos, ocultaram o cadáver da vítima. Coerente com as investigações da CNV, o processo criminal foi autorizado sob o argumento de que nem a Lei de Anistia nem a prescrição se aplicam aos crimes praticados contra Rubens Paiva, por serem considerados crimes contra a humanidade. A decisão judicial foi confirmada, por unanimidade, pelo Tribunal Regional Federal da 2a Região, no Rio de Janeiro, em um inédito posicionamento do Judiciário, no sentido de que o instituto da anistia não se aplica a crimes cometidos por agentes da ditadura militar contra a oposição ao regime. A ação penal, contudo, encontra-se suspensa desde setembro de 2014, por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, com base em decisão do tribunal de 2010 que confirmou a conformidade da Lei de Anistia de 1979 com a Constituição Federal. Em novembro de 2015, atendendo a pedido da Procuradoria-Geral da República, o ministro autorizou que a Justiça Federal do Rio de Janeiro procedesse à oitiva de 3 das 15 testemunhas no processo, por conta da idade avançada e do delicado estado de saúde.  Com o julgamento do mérito, o que se encontra atrelado a novo julgamento pelo STF, aguarda-se a confirmação por parte da mais alta corte nacional sobre a possibilidade de que aqueles acusados por crimes contra a humanidade possam ser julgados no Brasil.

Conclusão

O caso Rubens Paiva indica sinergia entre a atuação do MPF e da CNV, inclusive durante a vigência da CNV.  No dia 10 de dezembro de 2014, o Relatório Final da CNV foi entregue à Presidenta Dilma Rousseff, em cerimônia no Palácio do Planalto, e à sociedade civil, em reunião na Ordem dos Advogados do Brasil,  na mesma data a CNV fez a entrega de seu Relatório final,  em audiência, ao Procurador-Geral da República para que prontamente chegassem ao Ministério Público as investigações realizadas. 

Uma vez findas as atividades da CNV, o MPF instaurou novos procedimentos de investigação criminal, de forma a contemplar os 434 casos de mortos e desaparecidos que compõem o volume III do Relatório Final da CNV. Desde então, novas denúncias criminais têm sido apresentadas ao Judiciário, algumas das quais com considerações sobre as conclusões do informe e os documentos revelados pela CNV.

À CNV coube o papel da reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos e identificação das estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados a sua prática e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade. Mesmo que as investigações não tenham conferido a todos os familiares de desaparecidos a oportunidade de dar a seus entes queridos uma sepultura digna, passos significativos foram dados na compreensão da estrutura repressiva, suas instituições, seus agentes e a forma de atuação. Documentos,  testemunhos, provas e indícios sistematizados no acervo da CNV encontram-se hoje  sob a custódia do Arquivo Nacional, acessíveis ao público.

As 29 recomendações apresentadas com vistas a assegurar a não repetição de graves violações de direitos humanos orientam para reformas legais e institucionais ainda esperadas pela democracia brasileira. Cabe aqui a referência às duas primeiras: o reconhecimento pelas Forças Armadas de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar, assim como a determinação da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que lhes deram causa. Na medida em que a impunidade encontra-se na raiz da persistência do quadro de graves violações de direitos humanos, silente a CNV não poderia permanecer no que se refere ao alcance da anistia concedida em 1979. Aos que porventura tenham apostado que a Comissão Nacional da Verdade significaria uma alternativa à justiça no Brasil, esta respondeu que a verdade e a justiça constituem hoje as duas faces de uma mesma moeda, instrumento necessário para o aprofundamento do Estado democrático de direito. 

1 Vivien Fialho da Silva Ishaq é doutora em História pela Universidade Federal
Fluminense (UFF) e Coordenadora Regional do Arquivo Nacional em Brasília. Foi
gerente-executiva do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade.

2 Carolina de Campos Melo é doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), professora do Departamento de Direito da PUC-Rio e Advogada da
União (AGU). Foi membro do comitê de relatoria do Relatório Final da Comissão Nacional
da Verdade

3 PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, p.101.

4 Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Volume I. Brasília: CNV, 2014. p.
963.

5 Parte das investigações sobre o caso na CNV foi apresentada em fevereiro de 2014, em audiência pública realizada no Arquivo Nacional. Foi tratado como emblemático, no Relatório Final, entre os casos de desaparecimento forçado (capítulo 12), assim como mereceu análise no volume III, dedicado às vítimas fatais.

6 Revista Época. Filhos de Rubens Paiva falam sobre o dia em que o pai não voltou.
Disponível em: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/filhos-de-rubens-paiva-falam-sobre-
o-dia-em-que-o-pai-nao-voltou.html. Acesso em: 20.jan.2016.

7 Idem.

8 Idem.

9 Idem.

10 Arquivo Nacional, Fundo SNI, BR.DFANBSB.V8.AC.ACE.58477.86.

11 Arquivo Nacional, Fundo SNI, BR.DFANBSB.V8.AC.ACE.13761.86, p. 47.

12 Arquivo Nacional, Fundo SNI, BR.DFANBSB.V8.AC.ACE.58801.86.

13 Arquivo Nacional, Fundo SNI, BR.DFANBSB.V8.ARJ.ACE.446.71.

14 Arquivo Nacional, Fundo SNI, BR.DFANBSB.V8.AC.ACE.58801.86

15 Arquivo Nacional, Fundo SNI, BR.DFANBSB.V8.AC.ACE.13761.86, p. 20-23.

16 Arquivo Nacional, Fundo SNI, BR.DFANBSB.V8.ARJ.ACE.13761.86.001.002.

17 Rio de Janeiro (Estado). Comissão da Verdade do Rio. Relatório. Rio de Janeiro:
CEV-Rio, 2015. p. 186

18 Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Volume I. Brasília: CNV, 2014. p.
563.

19 Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Volume I. Brasília: CNV, 2014. p.
564

20 Arquivo Nacional, Fundo CNV, 00092.003667/2014-28.

21 Arquivo Nacional, Fundo CNV, 00092.003667/2014-28.

22 Arquivo Nacional, Fundo CNV, 00092.000306/2014-98.

23 PAIVA, Marcelo Rubens. Feliz Ano Velho. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.. p. 71-72).

24 Arquivo Nacional, Fundo CNV,00092.000306/2014-09.

25 Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Volume I. Brasília: CNV, 2014. p.
570.

26 Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Volume I. Brasília: CNV, 2014. p.
568.

27 Ibid. p. 732.

28 Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Volume I. Brasília: CNV, 2014. p.
843

29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Juiz deve ouvir apenas testemunhas listadas pela
PGR no caso Rubens Paiva. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNotciaDetalhe.asp?idConteudo=304838. Acesso em:
11.ago.2016.

30 MARTINS, André Saboia; OSMO, Carla; MELO, Carolina de Campos. Aportes y
repercusiones del informe de la comisión nacional de la verdad. Trad. Eleonora Acosta. In:
Revista Puentes. Junio 2015. Edición Especial. 15 años. La Plata, Argentina: Comisión
Provincial por la memória, 2015.

Bibliografia

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