Repressão e Pressão Internacional: O Brasil e a Proteção dos Direitos Humanos

Veja aqui o documento da semana em destaque! — Repressão e Pressão Internacional: O Brasil e a Proteção dos Direitos

Confira o documento na íntegra no nosso acervo: Memorando de conversação entre William P. Rogers, Charles A. Meyer, Robert W. Dean, Mario Gibson Barboza e Celso Diniz sobre imagem do Brasil no exterior

Caçada aos grupos de resistência à ditadura militar; presos políticos.  / br_rjanrio_ph_0_fot_00364

Datado de 1971, o documento relata a existência de uma preocupação, no interior da mídia e da opinião pública dos Estados Unidos da América (EUA), com os métodos de repressão utilizados no Brasil por sua força policial após o início do regime da ditatura civil-militar em 1964. O documento menciona que essa situação poderia afetar negativamente a reputação do Brasil nos EUA, especialmente em virtude de denúncias envolvendo a prática de abusos e de tortura no território brasileiro. O texto ressalta ainda a postura adotada pelo governo brasileiro do período diante de pedido de informações sobre esse tema apresentados, tanto pela Cruz Vermelha Internacional, como pela Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA)

Fundado em 1863, na Suíça, o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho é composto, hoje, pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, pelas Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, bem como pela Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Não cabe aqui distinguir cada uma delas e a função exercida por cada uma; basta por ora entender o papel desempenhado pelo Movimento por meio dessas organizações.  

De modo geral, de acordo com as quatro Convenções de Genebra assinadas de 1949, bem como com seus três Protocolos adicionais – dois assinados em 1977, e o terceiro, em 2005, a Cruz Vermelha é responsável pela promoção, pela implementação, pela defesa e pelo desenvolvimento das normas de direito internacional humanitário (DIH). A Cruz Vermelha não é a única entidade juridicamente comprometida com DIH, pois outros atores são igualmente obrigados a cumprir e a fazer cumprir esse conjunto de normas, a saber: estados-parte das Convenções, organizações internacionais, outras organizações não-governamentais, e mesmo grupos armados não-estatais. Assim, além de estar juridicamente a costumes e princípios de DIH, o Brasil assinou e ratificou os sete tratados acima mencionados – as quatro Convenções de 1949 foram ratificadas e promulgadas por meio do Decreto n. 42.121, de 21 de agosto de 1957, os dois Protocolos de 1977, por meio do Decreto n. 849, de 25 de junho de 1993, e, o Protocolo de 2005, por meio do Decreto n. 7.196, de 1º de junho de 2010. 

O DIH consiste no conjunto de normas jurídicas internacionais convencionais, costumeiras e principiológicas que visam a mitigar o sofrimento humano antes, durante e depois da deflagração de conflitos armados – sejam eles conflitos armados internacionais, ou conflitos armados não-internacionais. Grosso modo, o DIH se ocupa com a distinção entre civis e combatentes, a definição de indivíduos em situação fora de combate (feridos, enfermos, náufragos, e prisioneiros de guerra), a identificação alvo militares, e a proibição ou limitação do uso de determinados armamentos ou métodos de combate. De um modo geral, enquanto prisioneiros de guerra são pessoas que integram as forças armadas de outro estado durante um conflito armado internacional (art. 4 da III Convenção de Genebra de 1949), as pessoas do próprio estado detidas durante um conflito armado não internacional são civis deste estado – e, em caso de detenção, não podem estar sujeitas a tratamento cruel, humilhante ou degradante, ser submetidos à tortura ou à mutilação, ter negado seu direito à vida, entre outros (arts. 3 e 4 da IV Convenção de Genebra de 1949). 

Por seu turno, a Comissão de Direitos Humanos constituída no interior da OEA tem outro escopo de atuação: a proteção de direitos humanos (DH) no território dos estados-membros da OEA que integram o mecanismo de proteção de DH instituído no interior dessa organização internacional regional – conhecido como Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com sede em Washington DC (EUA), e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH), com sede em San José (Costa Rica), são os órgãos previstos pelos artigos 33 a 73 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 com o objetivo de conhecer e tratar de assuntos relacionados ao cumprimento dos compromissos previstos pela Convenção (art. 33 da Convenção). Enquanto a CIDH tem, de modo geral, competência para responder a pedidos a ela encaminhados contendo denúncias de violação de DHs em algum estado-membro, de maneira a apresentar recomendações para que este adote medidas necessárias para cessar violações ou para impedir que elas ocorram (art. 41 c/c 44 da Convenção), a CtIDH é competente para processar e julgar casos a ela encaminhados sobre violação de DHs por um estado-membro (arts 61 e 63 da Convenção). 

No período abrangido pelo documento, a Convenção Americana ainda não estava em vigor, funcionando a CIDH a partir de outro fundamento jurídico – a Resolução n. VIII, adotada ao final da Quinta Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores da OEA, realizada em Santiago (Chile) em 1959. De todo modo, a Convenção entrou em vigor em 1978, tendo o estado brasileiro assinado e ratificado esse instrumento por meio do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, e reconhecido a competência da CtIDH por meio do Decreto n. 4.463, de 8 de novembro de 2002. 

Dentre os inúmeros direitos previstos pela Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, podem ser enumerados o direito à vida (art. 4 da Convenção), direito à integridade pessoal (art. 5 da Convenção), direito a garantias judiciais (art. 8 da Convenção), entre outros. A Convenção não esgota, contudo, o rol de DH protegidos e promovidos pelo SIDH – e, nesse sentido, pode ser lembrada a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985, a qual entrou em vigor em 1987 no interior do SIDH, a qual foi assinada e ratificada pelo estado brasileiro por meio do Decreto n. 98.386, de 9 de dezembro de 1989, entre outros documentos internacionais adotados no interior do SIDH para a proteção de DH no continente americano. 

Até agora houve a propositura de vinte e três ações contra o estado brasileiro na CtIDH, tendo sido o país condenado em treze delas, absolvido em uma, enquanto as demais aguardam julgamento. Dentre os diversos temas tratados por essas medidas dirigidas contra o Brasil, encontram-se casos ocorridos durante o período da ditadura civil-militar – como o caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”), julgado em 2010, e o caso Herzog e Outros, julgado em 2018, envolvendo temas trazidos pelo documento, tais como: respeito à integridade pessoal (física, psíquica e moral), proibição, investigação e punição de detenções arbitrárias, de tortura, de execução sumária ou de desrespeito do direito à vida. 

Há uma sobreposição entre normas de DIH e em normas de DH – afinal, ambos os regimes se ocupam com a preservação de dignidade da pessoa humana. Contudo, essa sobreposição não diminui, fragiliza ou fragmenta a referida proteção, pois se tratam de regimes que dialogam entre si de maneira complementar – ainda que se ancorem em âmbitos normativos distintos e que se implementem por diferentes mecanismos institucionais. Neste particular, há inúmeras sentenças da CtIDH – em casos envolvendo El Salvador, Equador, Guatemala, Peru, entre outros – que apontam para essa intersecção, evidenciando o papel fundamental exercido por instituições estatais e não-estatais na promoção e na proteção nacional e internacional da dignidade da pessoa humana. 

Prof. Dr. Arthur Capella,

Pesquisador do NACE CNV-Brasil,

Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

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